Há cem anos atrás, às 9 da manhã, foi proclamada a república da varanda da câmara municipal de Lisboa. As palavras de José Relvas ecoaram pela Praça do Município e oficializaram uma das primeiras grandes vitórias do humanismo. Uma vitória que começou a ser idealizada no principio do século XIX, num território que germinou no mesmo dia 5 de Outubro, mas 767 anos antes, em 1143, aquando da assinatura do tratado de Zamora.
Muitos séculos e dinastias depois, com a vitória dos Liberais em 1820, inspirados pela igualdade e fraternidade Francesa e pelos ventos do outro lado do oceano, Portugal passou a viver sobre uma Monarquia Constitucional, abolindo o absolutismo e passando a eleger as cortes gerais, dando origem à Primeira constituição Portuguesa em 1822. Era no entanto uma eleição que apenas cerca de 15% da população tinha direito a sufragar, uma vez que a mulheres e analfabetos não era dado o direito ao voto. Convém situarmo-nos no tempo da história que contamos ou revivemos, nem que seja na nossa imaginação, julgo que só assim podemos compreender verdadeiramente o grande passo que terá sido o estabelecimento de um regime atribuído por eleição em detrimento do poder nascido em berço real.
Nada mais justo… nada mais lógico…
Em 1910, a corte tinha perdido quase todo o encanto. Vergada ao ultimato Inglês que punha em risco as nossas colónias e exposta a um partido republicano cada vez mais forte, viu Bordalo Pinheiro caricaturá-la com uma grande porca da qual todos os políticos mamavam e que a carbonária e a sua artilharia civil queriam destruir à bomba e ao tiro, aparentemente, sem grande indignação da população. Anos antes, no primeiro dia de Fevereiro de 1908, o brutal assassinato do Rei D. Carlos e do seu filho sucessor, em plena praça do comércio, que à época se chamava Terreiro do Paço, lançou o jovem de 18 anos D. Manuel II para o trono, tornando ainda mais frágil a já débil monarquia constitucional vigente.
Não quero estar aqui a contar os pormenores de uma revolução que não vivi, mas há nomes que não devemos esquecer, Machado Santos, Cândido dos Reis, José Relvas, Miguel Bombarda, Magalhães Lima, Luz de Almeida, Teófilo Braga, João Chagas, Afonso Costa, Manuel de Arriaga, António José de Almeida, Bernardino Machado, Egas Moniz, Carolina Beatriz Ângelo, a 1ª mulher a votar em Portugal, entre tantos outros mais ou menos anónimos, fizeram nascer uma Republica num País com mais de 80% de analfabetos, virgem da radiofonia, em que a noticias se espalhavam, na maior parte dos casos, de boca em boca. Para quem vive numa sociedade de informação, em que as noticias nos caem no colo minutos depois de se desenrolarem as situações que lhes dão origem, é difícil imaginar como seria viver na completa ignorância, sem saber ler nem escrever e nem a isso ter direito, sobrevivendo tantas vezes do campo ou da pesca, trabalhando dia após dia, sem folgas, sem horários, nem leis que nos protegessem de toda e qualquer injustiça que sobre nós recaísse.
Foram os homens, civis e militares, que se barricaram na rotunda, agora Marquês de Pombal,apoiados por 2 cruzadores estacionados no terreiro do paço, os responsáveis por quase tudo aquilo que muitos agora dizem estar em risco. A grande maioria dos nossos direitos, foram conquistados nos anos seguintes, no período mais conturbado da nossa história recente, entre 1910 e 1926. Terá sido um período caótico, com 9 presidências e 48 governos e uma ditadura sidonista pelo meio, mas por certo terá sido a altura, a par do pós 25 de Abril, em que mais se pensou o futuro de Portugal.
Escreveu-se a primeira constituição da República, domingo passou a ser folga obrigatória e os analfabetos passaram a poder votar, introduziu-se o casamento civil, compôs-se um novo hino, desenhou-se uma nova bandeira e um novo espírito nasceu.
O povo ganhou o poder de poder escolher, ou pelo menos ganhou as condições para o ter, porque para de facto o exercer em consciência foram precisos muitos anos, pois em 1926 diz-se que o povo escolheu o pão em vez da educação, entregando-se às mãos dos conservadores apoiados pela Igreja, numa santa aliança contra o conhecimento e educação de um povo, dando poder a uma ditadura que castrou a lápis azul o desenvolvimento intelectual português.
É por isso que apesar de sermos uma das repúblicas mais antigas do mundo, somos ainda uma jovem democracia, cheia de vícios antigos e reverências fora de moda. O tempo porém encarregar-se-á de mudar isso, tornando-nos numa sociedade cada vez mais participativa nas políticas que nos condicionam a forma de viver. As crises nunca são agradáveis, mas é quando as vivemos que nos esforçamos para perceber o que fizemos de errado e o que podemos fazer dai para a frente para que não tenhamos que passar por elas novamente.
Hoje sentimos no bolso as medidas que dizem ser solução para sairmos da crise em que parece nos estarmos a afundar, e mais do que nunca, o povo está atento, o povo está a ver.A pouco e pouco, novas vitórias como a limitação de mandatos e a criação de movimentos de cidadãos,abrem portas a uma democracia mais justa e mais igual. Culpar este governo por todos os males e fechar os olhos, é a forma mais fácil de não evoluirmos e deixarmos escapar uma oportunidade de fazer algo que fique gravado na história, algo que daqui a cem anos seja celebrado da mesma forma que hoje celebramos a republica.
As verdadeiras mudanças começam em nós.Começam na capacidade de nos distanciarmos e percebermos o que vemos, as coisas boas, as coisas más, o negro e o branco… e juntar tudo num puzzle a cores que nos mostre o suposto quadro perfeito, de como tudo deveria ser. Mas é mais difícil sermos capazes disso quando estamos órfãos de referências, cobertos de nuvens de suspeição sobre tudo e todos, esponjas de uma informação instantânea que insiste em esbarrar na obscuridade do estado.
Mas não é a velocidade e quantidade de informação que temos que mudar, essa seguirá o seu caminho separadamente do estado, desde que isenta e livre, mas deve ser sim, o próprio estado a abrir-se ao povo, porque essa é a única forma de atrair as pessoas para a política e restituir o valor a tão nobre actividade, que hoje insiste em repudiar os melhores quando devia aliciá-los e conquistá-los para si.
Sejamos por isso mais claros no que pudermos ser, mostremos como são aplicados os impostos das pessoas, divulguemos os custos e abramos os cofres das nossas receitas, para que todos juntos às claras e não às escuras num gabinete qualquer, se pense sobre o futuro de tão nobre País. Pessoalmente acredito que a qualquer um de nós, saiba melhor saber que deu 25€ para a biblioteca poder funcionar devidamente, ou 50 cêntimos para aquele concerto que até foi ver e gostou, ou qualquer outro valor para que pudesse ter uma piscina coberta e aquecida.No fundo, saber que se foi útil para alguma coisa em especifico, e por isso dar-lhe mais valor. Só assim teremos a possibilidade de devolver a credibilidade ao estado, permitindo a participação em vez do desinteresse, a discussão em vez do silêncio, no sentido de uma democracia participativa, plural, justa, alicerçada numa noção de mérito e de reconhecimento inquestionável.
Façamos por merecer um passado como o nosso, inspiremo-nos na memória dos grandes homens, que tornaram possível hoje termos também direitos e não só deveres e façamos o melhor que soubermos, se não por nós, por eles e pelos que virão a seguir a nós.