quinta-feira, 10 de abril de 2008

Um sopro de realidade

Seis da manhã, D. Justina, sem esperança nem convicção, sai da cama, prepara o almoço, acorda o filho, Humberto de seu nome, quase como um ritual. Uma hora depois, já está a caminho, 2 Kms de terra batida, debaixo de chuva, até à paragem que a levará aos prédios da vila, onde as senhoras ainda dormem, enquanto ela lava, engoma, limpa e esfrega em troca do seguro de acidentes de trabalho - não vão as senhoras ter chatices - e um cheque de € 350, sem descontos, nem esperança ou convicção.

Jogado em cima do sofá da sala, o Diário Económico. Luís Campos e Cunha e Miguel Cadilhe debatem se Portugal está em recessão. O primeiro recusa tal ideia, pois teria que existir uma variação real negativa do PIB em dois ou mais trimestres consecutivos, daí que seria impossível pedir ao Ecofin que nos considerasse em recessão, para Miguel Cadilhe é possível demonstrar a Bruxelas que estamos em recessão grave, de acordo com o n.º 2 do art.º 2 do procedimento relativo aos défices excessivos do Pacto de estabilidade e Crescimento.

Justina ajeita o sofá, limpa a mesinha, arruma o candeeiro, despeja o cinzeiro, pega nos copos, dobra o Jornal. PIB, Ecofin, recessão, Pacto de estabilidade e Crescimento. O Diabo que os carregue!

A muito custo, Augusto levanta-se, dois nacos de pão, queijo, leite e três comprimidos, deixados em fila por Justina. A coluna rebentada por anos de trabalho, sazonal, na apanha do morango e a queda de cima da oliveira, lançaram os seus dias na dúvida entre a dor da deslocação ao médico e a dor do imobilismo em casa, o encerramento do Centro de Saúde e o Hospital a mais de 30 kms, elevou a dúvida e a dor dor, assim como esperar uns meses pela TAC ou gastar o pé-de-meia e fazê-la numa semana.

No pequeno rádio, debate-se a qualificação do Serviço Nacional de Saúde, a devolução da confiança aos cidadãos e aos profissionais de saúde, o alargamento do SNS e o acesso a todos de forma equitativa, a melhoria no combate à mortalidade infantil e da esperança média de vida, o Plano Nacional de Saúde, os genéricos, a rigorosa gestão de recursos e de combate ao desperdício, as Unidades de Saúde Familiares.

Augusto apoia-se na bengala, enquanto se senta na cadeira do lado de fora de casa, encosta o pequeno rádio roufenho ao ouvido, sintoniza outro ponto. SNS, indicadores, PNS, USF. Puta que os pariu a todos!

Humberto acelera, desde que a fábrica fechou e o jogou para o desemprego é a terceira vez que é chamado ao Centro de Emprego, para ele Centro de Cursos. A Multinacional encontrou outros terrenos férteis em mão-de-obra não qualificada e ainda mais barata. Os sindicatos e os partidos agitaram-se, entre inscrições no sindicato e novos militantes, ficaram promessas, solidariedade e desemprego. Encosta a motorizada à porta do café, uma bica, o jornal, dois dedos de conversa.
Humberto folheia o Jornal com o dedo molhado de saliva, procurando as páginas de desporto, à sua frente dançam as palavras, plano tecnológico, criação de emprego para licenciados, novas oportunidades, aumento do investimento estrangeiro, crescimento do PIB, redução do défice, Prime, PIN, Aeroporto, TGV, nova travessia, globalização...

Globalização?! Desperta, tira os olhos do jornal. O seguro na Global, já vencido, não lhe permite levar a motorizada para além do café da vila, não vá o Diabo tecê-las. Badamerda para isto!

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